quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Memórias e EQM

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Os estudos sobre EQM estão baseados, principalmente, nos relatos das pessoas que vivenciaram tal experiência. Ao produzir os relatos, as pessoas evocam as memórias do que teria ocorrido, no entanto, tal evocação não condiz totalmente com o que de fato ocorreu. As memórias existem no nosso cérebro como sinais elétricos e bioquímicos, que são codificados e traduzidos por nossos neurônios. Em cada codificação e tradução existem perdas e, por isso, as memórias não são retratos literais dos eventos de nosso passado. Além disso, a nossa forma de interpretar nossas memórias depende do contexto sociocultural no qual estamos inseridos e do nosso olhar no presente, que varia de acordo com as nossas emoções e momentos de vida. Portanto, ao relatar um fato ocorrido, evocando nossas lembranças, estamos também recriando o que aconteceu: “O individuo ao elaborar uma narrativa autobiográfica, pode subestimar ou superestimar aspectos que considera mais – ou menos – legítimos na sua trajetória, pertinentes ao contexto em que a narrativa é produzida” (Oliveira, Rego e Aquino, 2006, p. 128). Dessa forma, os relatos de EQMs não podem ser considerados uma reprodução fiel das experiências vividas. Mas esta não é a única discussão presente quando estudamos as memórias associadas às experiências de quase-morte; é preciso refletir também sobre como estas memórias são formadas diante da possibilidade de um período de inatividade cerebral.
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Uma das grandes polêmicas presentes no tema das EQMs se refere ao estado de ativação cerebral: o cérebro estaria ativo ou inativo durante a experiência memorizada? Muitos relatos remetem à períodos em que o cérebro da pessoa estaria inconsciente, fora do estado de ativação considerado normal. E os cientistas se perguntam se é possível formar memórias em períodos de inconsciência. Greyson (2007, como citado em Alves, 2013), por exemplo, afirma que algumas pesquisas comprovam que em paradas cardíacas ou sobre anestesia geral ainda pode existir percepção sensorial, pensamento e memórias, embora tal constatação seja incompatível com os modelos fisiológicos atuais. Lopes (n.d) informa na revista Veja que no processo de desligamento do cérebro as funções superiores (memória e cognição) são as primeiras a serem inativadas, enquanto as funções vitais (respiração e pressão arterial) são as últimas a serem afetadas. Mas, antes ou depois deste processo podem ocorrer picos de intensa atividade cerebral, envolvendo um funcionamento atípico dos neurônios; alguns autores, como o neurologista Paulo Bertolucci, acreditam que as EQMs ocorrem nestes picos e não durante os períodos de inatividade.
Esta questão permanece em debate para os pesquisadores que partem do paradigma da consciência localizada no cérebro. Porém, aqueles que defendem o paradigma da consciência não-local, não consideram isso um problema. Para eles, a consciência não depende do estado de ativação cerebral e, por isso, as memórias ou outras funções superiores podem existir em períodos de inativação (ver “Consciência Quântica”). Partindo de um ponto de vista religioso, isto também não seria um problema, pois a consciência estaria em uma alma ou em um espírito e pode haver inclusive memórias de outras vidas, como defendem os espíritas.
Como curiosidade, vale a pena mencionar que existem discussões científicas sobre as memórias do parto. Uma das teorias já propostas para explicar alguns aspectos das experiências de quase-morte, como a sensação de amor e a percepção de um túnel de luz, se refere às memórias do momento do nascimento. O individuo recorda a passagem pelo canal vaginal e o acolhimento da mãe.  Entretanto, esta teoria não se adequa aos casos de parto cesariano e não encontra apoio no argumento científico de que os recém-nascidos não possuem maturidade orgânica suficiente para registrar a memória deste momento. No entanto, é importante informar que existem algumas indicações incomuns de casos em que crianças pequenas relatam sobre o que aconteceu em seu nascimento (Ring e Cooper, 1997).
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 Apesar das várias discussões apresentadas sobre a confiabilidade e a possibilidade de evocar ou formar memórias em experiências de quase-morte, os relatos produzidos pelas pessoas são psicologicamente reais para elas. Sendo realidades recriadas ou não, são realidades para aqueles que as relatam. Afinal, nos definimos enquanto sujeitos a partir de nosso discurso acerca de nossas lembranças: nossas memórias e esquecimentos “não só nos dizem quem somos, mas também nos permitem projetar rumo ao futuro, isto é, nos dizem quem poderemos ser” (Izquierdo, 2002, p.09). Independentemente do estado cerebral no momento da formação das memórias relatadas ou da confiabilidade das mesmas, é através dos relatos elaborados que as pessoas interpretam a experiência vivida e orientam a sua maneira de encará-la daqui pra frente, definindo as suas possibilidades de ser e vir-a-ser.

Referências Bibliográficas

Alves, E. (2013). Experiências de Quase Morte: um estudo dos aspectos psicológicos.Psicologado. Disponível em: <http://artigos.psicologado.com/atuacao/tanatologia/experiencia-de-quase-morte-um-estudo-dos-aspectos-psicologicos>. Acesso em nov. 2013. 

Izquierdo, I. (2002). O que é memória?.  In: Izquierdo, Iván. Memória. Porto Algre: Artmed.

Oliveira, M.K; Rego, T.C; Aquino, J.G. (2006). Desenvolvimento Psicológico e Constituição de Subjetividades: Ciclos de Vida, Narrativas Autobiográficas e Tensões da Contemporaneidade. Pro-Posições, v.17, n.2 (50). 

Ring, K.; Cooper, S. (1997). Near-Deatj and Out-of-Body Experiences in the Blind: A study of Apparent Eyeless Vision. Journal of Near-Death Studies, 16(2). Disponível em: <http://kernz.org/nd/nde-papers/Ring/Ring-Journal%20of%20Near-Death%20Studies_1997-16-101-147-1.pdf>. Acesso em fev/2013.

Links
Lopes, A. D. Coma: O dia em que Morri. Veja/2010