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Os estudos sobre EQM estão baseados, principalmente, nos relatos das
pessoas que vivenciaram tal experiência. Ao produzir os relatos, as pessoas
evocam as memórias do que teria ocorrido, no entanto, tal evocação não condiz
totalmente com o que de fato ocorreu. As memórias existem no nosso cérebro como
sinais elétricos e bioquímicos, que são codificados e traduzidos por nossos neurônios.
Em cada codificação e tradução existem perdas e, por isso, as memórias não são retratos
literais dos eventos de nosso passado. Além disso, a nossa forma de interpretar
nossas memórias depende do contexto sociocultural no qual estamos inseridos e
do nosso olhar no presente, que varia de acordo com as nossas emoções e
momentos de vida. Portanto, ao relatar um fato ocorrido, evocando nossas lembranças, estamos
também recriando o que aconteceu: “O individuo ao elaborar uma narrativa
autobiográfica, pode subestimar ou superestimar aspectos que considera mais –
ou menos – legítimos na sua trajetória, pertinentes ao contexto em que a
narrativa é produzida” (Oliveira, Rego e Aquino, 2006, p. 128). Dessa forma, os
relatos de EQMs não podem ser considerados uma reprodução fiel das experiências
vividas. Mas esta não é a única discussão presente quando estudamos as memórias
associadas às experiências de quase-morte; é preciso refletir também sobre como
estas memórias são formadas diante da possibilidade de um período de
inatividade cerebral.
Uma das grandes polêmicas presentes no tema das EQMs se refere ao estado
de ativação cerebral: o cérebro estaria ativo ou inativo durante a experiência
memorizada? Muitos relatos remetem à períodos em que o cérebro da pessoa
estaria inconsciente, fora do estado de ativação considerado normal. E os
cientistas se perguntam se é possível formar memórias em períodos de inconsciência.
Greyson (2007, como citado em Alves, 2013), por exemplo, afirma que algumas pesquisas
comprovam que em paradas cardíacas ou sobre anestesia geral ainda pode existir percepção
sensorial, pensamento e memórias, embora tal constatação seja incompatível com
os modelos fisiológicos atuais. Lopes (n.d) informa na revista Veja que no processo de desligamento do cérebro
as funções superiores (memória e cognição) são as primeiras a serem inativadas,
enquanto as funções vitais (respiração e pressão arterial) são as últimas a
serem afetadas. Mas, antes ou depois deste processo podem ocorrer picos de intensa
atividade cerebral, envolvendo um funcionamento atípico dos neurônios; alguns
autores, como o neurologista Paulo Bertolucci, acreditam que as EQMs ocorrem
nestes picos e não durante os períodos de inatividade.
Esta questão permanece em debate para os pesquisadores que partem do
paradigma da consciência localizada no cérebro. Porém, aqueles que defendem o
paradigma da consciência não-local, não consideram isso um problema. Para eles,
a consciência não depende do estado de ativação cerebral e, por isso, as memórias
ou outras funções superiores podem existir em períodos de inativação (ver “Consciência
Quântica”). Partindo de um ponto de vista religioso, isto também não seria um
problema, pois a consciência estaria em uma alma ou em um espírito e pode haver
inclusive memórias de outras vidas, como defendem os espíritas.
Como curiosidade, vale a pena mencionar que existem discussões
científicas sobre as memórias do parto. Uma das teorias já propostas para
explicar alguns aspectos das experiências de quase-morte, como a sensação de
amor e a percepção de um túnel de luz, se refere às memórias do momento do
nascimento. O individuo recorda a passagem pelo canal vaginal e o acolhimento
da mãe. Entretanto, esta teoria não se
adequa aos casos de parto cesariano e não encontra apoio no argumento científico
de que os recém-nascidos não possuem maturidade orgânica suficiente para registrar
a memória deste momento. No entanto, é importante informar que existem algumas indicações
incomuns de casos em que crianças pequenas relatam sobre o que aconteceu em seu
nascimento (Ring e Cooper, 1997).
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Apesar das várias discussões apresentadas
sobre a confiabilidade e a possibilidade de evocar ou formar memórias em experiências
de quase-morte, os relatos produzidos pelas pessoas são psicologicamente reais
para elas. Sendo realidades recriadas ou não, são realidades para aqueles que
as relatam. Afinal, nos definimos enquanto sujeitos a partir de nosso discurso
acerca de nossas lembranças: nossas memórias e esquecimentos “não só nos dizem
quem somos, mas também nos permitem projetar rumo ao futuro, isto é, nos dizem
quem poderemos ser” (Izquierdo, 2002, p.09). Independentemente do estado
cerebral no momento da formação das memórias relatadas ou da confiabilidade das
mesmas, é através dos relatos elaborados que as pessoas interpretam a
experiência vivida e orientam a sua maneira de encará-la daqui pra frente,
definindo as suas possibilidades de ser e vir-a-ser.
Alves, E. (2013). Experiências de Quase Morte: um estudo dos aspectos psicológicos.Psicologado. Disponível em: <http://artigos.psicologado.com/atuacao/tanatologia/experiencia-de-quase-morte-um-estudo-dos-aspectos-psicologicos>. Acesso em nov. 2013.
Izquierdo, I. (2002). O que é memória?. In: Izquierdo, Iván. Memória. Porto Algre: Artmed.
Oliveira, M.K; Rego, T.C; Aquino, J.G. (2006). Desenvolvimento Psicológico e Constituição de Subjetividades: Ciclos de Vida, Narrativas Autobiográficas e Tensões da Contemporaneidade. Pro-Posições, v.17, n.2 (50).
Ring, K.; Cooper, S. (1997). Near-Deatj and Out-of-Body Experiences in the Blind: A study of Apparent Eyeless Vision. Journal of Near-Death Studies, 16(2). Disponível em: <http://kernz.org/nd/nde-papers/Ring/Ring-Journal%20of%20Near-Death%20Studies_1997-16-101-147-1.pdf>. Acesso em fev/2013.
Links
Lopes, A. D. Coma: O dia em que Morri. Veja/2010.