Escolhemos estudar as experiências de
quase-morte (EQMs) devido ao seu caráter polêmico e intermediário entre a
espiritualidade e a ciência. Além disso, os casos estão se tornando mais
frequentes diante do avanço tecnológico na saúde e da crescente liberdade de
expressão na sociedade, ganhando visibilidade na ciência, na mídia e nos
contextos espirituais. A crescente liberdade de expressão influenciou também a
ampliação do diálogo entre a ciência e a espiritualidade e já existem pesquisas
indicando a importância desta na saúde.
No presente blog, nos
propomos a responder a seguinte pergunta-problema “a EQM tem explicação?” e
para isso realizamos um levantamentos bibliográfico. Nos estudos da EQM
percebemos o dilema entre dois pressupostos: a afirmação científica de que a
consciência é uma função do cérebro; e a crença de que existe uma dimensão
espiritual ou independente da consciência, que seria extracorpórea. As
variáveis envolvidas são de natureza social, biológica e espiritual. E as
hipóteses, por sua vez, oscilam entre a tendência de confirmar o pressuposto
científico ou de questioná-lo. Nosso objetivo é mostrar os diversos pontos de
vista, revelando os consensos e as divergências na tentativa de obter uma
resposta para a pergunta-problema, e também indicar a importância dos estudos
nesta área.
Em geral, as pesquisas na área visam
buscar as causas da EQM, por isso, tendem a focar nas semelhanças, numa
universalidade independente de variações culturais. Essa postura gera lacunas
na compreensão da influência do contexto social, das singularidades e também
das variações entre as faixas etárias. Dessa forma, prioriza-se a estrutura do
que acontece: visão do túnel de luz, de seres iluminados, visão panorâmico do
corpo, passagem para outra dimensão, entre outras. Nessa perspectiva, o
conteúdo subjetivo de cada EQM não é explorado, desconsiderando variações :
como é essa outra dimensão, como são ou quem são os seres vistos, qual a
mensagem, entre outras especificidades.
Lordelo (2002) comenta sobre esta
tendência de colocar o contexto social como algo secundário e priorizar a busca
pela causalidade do fenômeno estudado, seguindo o ideal de objetividade na
ciência. Otto, Ribeiro e Bussab (2003), por sua vez, argumentam sobre a
persistência da dicotomia entre o biológico e o cultural e as
tentativas de integrá-los. Percebe-se, portanto, que no estudo das EQMs ainda
há esta mesma dificuldade de construir uma visão mais abrangente do assunto,
contemplando o contexto sociocultural e a subjetividade.
Sabe-se que nas EQMs os processos
cognitivos estão alterados: há relatos de percepção extracorpórea; alterações
na fluidez do pensamento, na memória (ecmnésia, por exemplo), na emoção
(sensações de paz, por exemplo), entre outras. Algumas das alterações são
inexplicáveis, como a percepção do que aconteceu enquanto o paciente estava
“inconsciente” ou a percepção visual em cegos. Uma das polêmicas neste campo
diz respeito à localização dos processos (cérebro ou consciência), busca-se
saber se as alterações observadas ocorrem quando o cérebro parou de funcionar
(localizando as alterações na consciência) ou quando se encontra em um estado
alterado (localizando as alterações no cérebro).
Há diversas hipóteses explicativas na
área da neuropsicologia, correlacionando a experiência com o funcionamento
cerebral, embora ainda não haja um consenso. A falta de oxigênio no cérebro
(hipóxia ou anóxia), por exemplo, pode causar alucinações. A hipóxia provoca
uma ativação anormal dos neurônios associados à visão, o que pode ser uma
explicação para a percepção de um túnel de luz, que na verdade é um conjunto de
pontos luminosos centrais. Outras hipóteses se fundamentam em questões
psicológicas, como a expectativa diante do medo da morte, que geraria
mecanismos de defesa no cérebro, como a liberação de noradrelina pelo lócus
cerúleos. A noradrenalina afeta processos cognitivos envolvidos na memória e na
emoção, que se alteram durante a EQM. Medicamentos utilizados e outros
neurotransmissores (adrenalina, serotonina, vasopressina e glutamato)
também podem estar associados. Há indicações da influência de áreas cerebrais específicas,
principalmente do lobo temporal; estimulações e/ou alterações nesta área podem
produzir vivências semelhantes às experiências de quase-morte.
O tema ainda é um mistério, não há uma
explicação definida. Para aprimorar a compreensão do tema, os estudiosos
precisarão adotar uma postura aberta, sendo capazes de considerar os diversos
pontos de vista, incluindo o dos próprios indivíduos que viveram uma
EQM. Moura e Ribas (2009) informam que a humanidade se formou na interação
do biológico com o cultural e Cescon (2011) afirma que o cérebro parece estar
predisposto a participar de experiências espirituais, o que evidencia a
importância da espiritualidade na evolução da espécie. Consideramos que a
espiritualidade é uma necessidade humana, que deve ser investigada no campo
cientifico. Algumas pesquisas já demonstraram a importância da mesma na área da
saúde e os impactos que estas experiências podem promover nas pessoas.
Moura, M. L. S.; Ribas, A. F. P. (2009) Evolução e Desenvolvimento Humano. In E. Otta & M. E. Yamamoto (coords). Psicologia Evolucionista. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
Lordelo, E. R. (2002). Contexto e desenvolvimento humano: quadro conceitual. In Lordelo, Carvalho e Koller (orgs). Infância brasileira e contextos de desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Otto, E.; Ribeiro, F. L.; Bussab, V. S. R. (2003). Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311.
Kristeva, J. (2007). Introdução à linguística. História da Linguagem. Portugal: Lda.
Gracia, T. I. (2005). O "giro linguístico". In Lupicinio Iñiguez (coord). Manual de análise do discurso em ciências sociais. Rio de Janeiro: Vozes.
Maturana, H. R; Varela, F. J. (2007). A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena.
Kristensen, C. H; Almeida, R. M. M.; Gomes, W. B. (2001). Desenvolvimento Histórico e Fundamentos Metodológicos da Neuropsicologia Cognitiva. Psicologia: Reflexão e Crítica, 14 (2), pp.259-274.
LeDoux, J. (2001). Lembranças de emoções antigas. In: O cérebro emocional: os misteriosos alicerces da vida emocional. Rio de Janeiro: Objetiva.
Cescon, E. (2011). Neurociência e religião: as pesquisas neurológicas em torno da experiência religiosa. Estudos de Religião, v.25, n.41, p.77-96.
Haraway, D. (1995). Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernus pagu (5), pp.07-41.
Experiências com conteúdo místico e
religioso, como as EQMs, sempre existiram na humanidade, recebendo destacado
valor, principalmente, para os religiosos. No entanto, o reconhecimento da
ciência e, consequentemente, as pesquisas na área só surgiram recentemente. As
investigações científicas estão ganhando crescente importância, dado o
potencial das EQMs no estudo da consciência e da relação mente x cérebro.
Concordamos com a autora feminista Donna
Haraway, defensora da ideia de que todo pesquisador coloca a si mesmo e a sua
ideologia na pesquisa que produz, e por isso não pretendemos dizer que somos
neutras na produção deste blog.Também reconhecemos a razão de Maturana e Varela
(2007) quando afirmam que no processo de conhecer um fenômeno passamos também a
criá-lo. Desta forma, o nosso blog revela nossos interesses e todas as autoras
deste blog possuem algum interesse em espiritualidade, o que nos levou a
estudar este tema e a buscar um maior diálogo entre o científico e o
espiritual.
Os processos de mudanças associados à
vivência da “quase-morte” também são pouco explorados; indica-se o que muda,
mas não como muda. Por exemplo, indica-se mudanças nos valores e atitudes
diante da vida, na personalidade e nas relações interpessoais e se afirma o
potencial transformador destas experiências. No entanto, restam lacunas na
compreensão de como isso ocorre, de quais são os fatores envolvidos ou de como
as especificidades individuais (idade, sexo, família, contexto social)
influenciam estas mudanças. Quanto às faixas etárias, é possível que haja
diferenças na interpretação e expressão das EQMs entre crianças e adultos, uma
vez que os níveis de abstração no raciocínio e na linguagem são distintos; é
possível que as crianças priorizem a linguagem não-verbal na hora de relatar.
Mas isto também se configura como outra lacuna no estudo deste tema.
Concernente à linguagem, há muitas
limitações, como a dificuldade de expressar em palavras as experiências vividas
e de categorizar as vivências em diferentes idiomas e culturas, sendo
necessário uma adaptação semântica e uma associação com os estudos da
macrolinguística. Sabe-se que a linguagem produz sentido e produz também a
realidade; ao falar de sua experiência, o indivíduo também está reformulando-a
e reformulando a sua forma de ver a si mesmo diante do ocorrido e, por isso, o
pesquisador deve ser cauteloso na hora de escolher as palavras para se referir
à experiência relatada (Gracia, 2005). Apesar das diferenças culturais,
percebe-se que há grande semelhança no uso de alguns signos nos relatos, como
por exemplo, a descrição de um túnel de luz. Isso nos remete à Saussure, um
grande teórico da microlinguística, que mostrava em seus estudos a objetividade
e a universalidade dos signos presentes na língua (Kristeva, 2007).
Há uma tendência para explicar as EQMs a
partir do cérebro, sem, no entanto, estudar os efeitos que experiências
místicas e subjetivas como esta podem provocar no mesmo (Cescon, 2011). Porém,
a ciência reconhece cada vez mais o quanto a afetividade e a subjetividade
influenciam o funcionamento cerebral (LeDoux, 2001). Além disso, há um grupo de
pesquisadores que buscam localizar cada um dos processos cognitivos em áreas
específicas do cérebro e outros com uma visão mais globalista; essa tendência
de localizar os processos mentais no cérebro é marcante na história da
psicologia (Kristensen, Almeida & Gomes, 2001).
Referências Bibliográficas
Todas as informações utilizadas foram
baseadas nas postagens feitas neste mesmo blog, que, por sua vez, estão
fundamentadas em autores citados na página “Indicações de vídeos e leituras”.
Também utilizamos produções da mídia como fontes complementares, foi possível
colher nomes e dados através desta e buscar explorá-los com mais profundidade a
partir da leitura de textos científicos. A visão interdisciplinar foi
construída a partir dos textos abaixo:
Moura, M. L. S.; Ribas, A. F. P. (2009) Evolução e Desenvolvimento Humano. In E. Otta & M. E. Yamamoto (coords). Psicologia Evolucionista. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.
Lordelo, E. R. (2002). Contexto e desenvolvimento humano: quadro conceitual. In Lordelo, Carvalho e Koller (orgs). Infância brasileira e contextos de desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Otto, E.; Ribeiro, F. L.; Bussab, V. S. R. (2003). Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311.
Kristeva, J. (2007). Introdução à linguística. História da Linguagem. Portugal: Lda.
Gracia, T. I. (2005). O "giro linguístico". In Lupicinio Iñiguez (coord). Manual de análise do discurso em ciências sociais. Rio de Janeiro: Vozes.
Maturana, H. R; Varela, F. J. (2007). A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena.
Kristensen, C. H; Almeida, R. M. M.; Gomes, W. B. (2001). Desenvolvimento Histórico e Fundamentos Metodológicos da Neuropsicologia Cognitiva. Psicologia: Reflexão e Crítica, 14 (2), pp.259-274.
LeDoux, J. (2001). Lembranças de emoções antigas. In: O cérebro emocional: os misteriosos alicerces da vida emocional. Rio de Janeiro: Objetiva.
Cescon, E. (2011). Neurociência e religião: as pesquisas neurológicas em torno da experiência religiosa. Estudos de Religião, v.25, n.41, p.77-96.
Haraway, D. (1995). Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernus pagu (5), pp.07-41.
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