Interdisciplinaridade Crítica

          Escolhemos estudar as experiências de quase-morte (EQMs) devido ao seu caráter polêmico e intermediário entre a espiritualidade e a ciência. Além disso, os casos estão se tornando mais frequentes diante do avanço tecnológico na saúde e da crescente liberdade de expressão na sociedade, ganhando visibilidade na ciência, na mídia e nos contextos espirituais. A crescente liberdade de expressão influenciou também a ampliação do diálogo entre a ciência e a espiritualidade e já existem pesquisas indicando a importância desta na saúde. 
Experiências com conteúdo místico e religioso, como as EQMs, sempre existiram na humanidade, recebendo destacado valor, principalmente, para os religiosos. No entanto, o reconhecimento da ciência e, consequentemente, as pesquisas na área só surgiram recentemente. As investigações científicas estão ganhando crescente importância, dado o potencial das EQMs no estudo da consciência e da relação mente x cérebro.
No presente blog, nos propomos a responder a seguinte pergunta-problema “a EQM tem explicação?” e para isso realizamos um levantamentos bibliográfico. Nos estudos da EQM percebemos o dilema entre dois pressupostos: a afirmação científica de que a consciência é uma função do cérebro; e a crença de que existe uma dimensão espiritual ou independente da consciência, que seria extracorpórea. As variáveis envolvidas são de natureza social, biológica e espiritual. E as hipóteses, por sua vez, oscilam entre a tendência de confirmar o pressuposto científico ou de questioná-lo. Nosso objetivo é mostrar os diversos pontos de vista, revelando os consensos e as divergências na tentativa de obter uma resposta para a pergunta-problema, e também indicar a importância dos estudos nesta área.
Concordamos com a autora feminista Donna Haraway, defensora da ideia de que todo pesquisador coloca a si mesmo e a sua ideologia na pesquisa que produz, e por isso não pretendemos dizer que somos neutras na produção deste blog.Também reconhecemos a razão de Maturana e Varela (2007) quando afirmam que no processo de conhecer um fenômeno passamos também a criá-lo. Desta forma, o nosso blog revela nossos interesses e todas as autoras deste blog possuem algum interesse em espiritualidade, o que nos levou a estudar este tema e a buscar um maior diálogo entre o científico e o espiritual. 
Em geral, as pesquisas na área visam buscar as causas da EQM, por isso, tendem a focar nas semelhanças, numa universalidade independente de variações culturais. Essa postura gera lacunas na compreensão da influência do contexto social, das singularidades e também das variações entre as faixas etárias. Dessa forma, prioriza-se a estrutura do que acontece: visão do túnel de luz, de seres iluminados, visão panorâmico do corpo, passagem para outra dimensão, entre outras. Nessa perspectiva, o conteúdo subjetivo de cada EQM não é explorado, desconsiderando variações : como é essa outra dimensão, como são ou quem são os seres vistos, qual a mensagem, entre outras especificidades.
Lordelo (2002) comenta sobre esta tendência de colocar o contexto social como algo secundário e priorizar a busca pela causalidade do fenômeno estudado, seguindo o ideal de objetividade na ciência. Otto, Ribeiro e Bussab (2003), por sua vez, argumentam sobre a persistência da dicotomia entre o biológico e o cultural e as tentativas de integrá-los. Percebe-se, portanto, que no estudo das EQMs ainda há esta mesma dificuldade de construir uma visão mais abrangente do assunto, contemplando o contexto sociocultural e a subjetividade. 
Os processos de mudanças associados à vivência da “quase-morte” também são pouco explorados; indica-se o que muda, mas não como muda. Por exemplo, indica-se mudanças nos valores e atitudes diante da vida, na personalidade e nas relações interpessoais e se afirma o potencial transformador destas experiências. No entanto, restam lacunas na compreensão de como isso ocorre, de quais são os fatores envolvidos ou de como as especificidades individuais (idade, sexo, família, contexto social) influenciam estas mudanças. Quanto às faixas etárias, é possível que haja diferenças na interpretação e expressão das EQMs entre crianças e adultos, uma vez que os níveis de abstração no raciocínio e na linguagem são distintos; é possível que as crianças priorizem a linguagem não-verbal na hora de relatar. Mas isto também se configura como outra lacuna no estudo deste tema.
Concernente à linguagem, há muitas limitações, como a dificuldade de expressar em palavras as experiências vividas e de categorizar as vivências em diferentes idiomas e culturas, sendo necessário uma adaptação semântica e uma associação com os estudos da macrolinguística. Sabe-se que a linguagem produz sentido e produz também a realidade; ao falar de sua experiência, o indivíduo também está reformulando-a e reformulando a sua forma de ver a si mesmo diante do ocorrido e, por isso, o pesquisador deve ser cauteloso na hora de escolher as palavras para se referir à experiência relatada (Gracia, 2005). Apesar das diferenças culturais, percebe-se que há grande semelhança no uso de alguns signos nos relatos, como por exemplo, a descrição de um túnel de luz. Isso nos remete à Saussure, um grande teórico da microlinguística, que mostrava em seus estudos a objetividade e a universalidade dos signos presentes na língua (Kristeva, 2007). 
Sabe-se que nas EQMs os processos cognitivos estão alterados: há relatos de percepção extracorpórea; alterações na fluidez do pensamento, na memória (ecmnésia, por exemplo), na emoção (sensações de paz, por exemplo), entre outras. Algumas das alterações são inexplicáveis, como a percepção do que aconteceu enquanto o paciente estava “inconsciente” ou a percepção visual em cegos. Uma das polêmicas neste campo diz respeito à localização dos processos (cérebro ou consciência), busca-se saber se as alterações observadas ocorrem quando o cérebro parou de funcionar (localizando as alterações na consciência) ou quando se encontra em um estado alterado (localizando as alterações no cérebro). 
Há uma tendência para explicar as EQMs a partir do cérebro, sem, no entanto, estudar os efeitos que experiências místicas e subjetivas como esta podem provocar no mesmo (Cescon, 2011). Porém, a ciência reconhece cada vez mais o quanto a afetividade e a subjetividade influenciam o funcionamento cerebral (LeDoux, 2001). Além disso, há um grupo de pesquisadores que buscam localizar cada um dos processos cognitivos em áreas específicas do cérebro e outros com uma visão mais globalista; essa tendência de localizar os processos mentais no cérebro é marcante na história da psicologia (Kristensen, Almeida & Gomes, 2001). 
Há diversas hipóteses explicativas na área da neuropsicologia, correlacionando a experiência com o funcionamento cerebral, embora ainda não haja um consenso. A falta de oxigênio no cérebro (hipóxia ou anóxia), por exemplo, pode causar alucinações. A hipóxia provoca uma ativação anormal dos neurônios associados à visão, o que pode ser uma explicação para a percepção de um túnel de luz, que na verdade é um conjunto de pontos luminosos centrais. Outras hipóteses se fundamentam em questões psicológicas, como a expectativa diante do medo da morte, que geraria mecanismos de defesa no cérebro, como a liberação de noradrelina pelo lócus cerúleos. A noradrenalina afeta processos cognitivos envolvidos na memória e na emoção, que se alteram durante a EQM. Medicamentos utilizados e outros neurotransmissores (adrenalina, serotonina, vasopressina e glutamato) também podem estar associados. Há indicações da influência de áreas cerebrais específicas, principalmente do lobo temporal; estimulações e/ou alterações nesta área podem produzir vivências semelhantes às experiências de quase-morte.
O tema ainda é um mistério, não há uma explicação definida. Para aprimorar a compreensão do tema, os estudiosos precisarão adotar uma postura aberta, sendo capazes de considerar os diversos pontos de vista, incluindo o dos próprios indivíduos que viveram uma EQM. Moura e Ribas (2009) informam que a humanidade se formou na interação do biológico com o cultural e Cescon (2011) afirma que o cérebro parece estar predisposto a participar de experiências espirituais, o que evidencia a importância da espiritualidade na evolução da espécie. Consideramos que a espiritualidade é uma necessidade humana, que deve ser investigada no campo cientifico. Algumas pesquisas já demonstraram a importância da mesma na área da saúde e os impactos que estas experiências podem promover nas pessoas. 

Referências Bibliográficas

Todas as informações utilizadas foram baseadas nas postagens feitas neste mesmo blog, que, por sua vez, estão fundamentadas em autores citados na página “Indicações de vídeos e leituras”. Também utilizamos produções da mídia como fontes complementares, foi possível colher nomes e dados através desta e buscar explorá-los com mais profundidade a partir da leitura de textos científicos.  A visão interdisciplinar foi construída a partir dos textos abaixo:

Moura, M. L. S.; Ribas, A. F. P. (2009) Evolução e Desenvolvimento Humano. In E. Otta & M. E. Yamamoto (coords). Psicologia Evolucionista. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 

Lordelo, E. R. (2002). Contexto e desenvolvimento humano: quadro conceitual. In Lordelo, Carvalho e Koller (orgs). Infância brasileira e contextos de desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo. 

Otto, E.; Ribeiro, F. L.; Bussab, V. S. R. (2003). Inato versus adquirido: a persistência da dicotomia. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.34, p.283-311. 

Kristeva, J. (2007). Introdução à linguística. História da Linguagem. Portugal: Lda. 

Gracia, T. I. (2005). O "giro linguístico". In Lupicinio Iñiguez (coord). Manual de análise do discurso em ciências sociais. Rio de Janeiro: Vozes. 

Maturana, H. R; Varela, F. J. (2007). A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana.  São Paulo: Palas Athena. 

Kristensen, C. H; Almeida, R. M. M.; Gomes, W. B. (2001). Desenvolvimento Histórico e Fundamentos Metodológicos da Neuropsicologia Cognitiva. Psicologia: Reflexão e Crítica, 14 (2), pp.259-274.  

LeDoux, J. (2001). Lembranças de emoções antigas. In: O cérebro emocional: os misteriosos alicerces da vida emocional. Rio de Janeiro: Objetiva. 

Cescon, E. (2011). Neurociência e religião: as pesquisas neurológicas em torno da experiência religiosa. Estudos de Religião, v.25, n.41, p.77-96. 

Haraway, D. (1995). Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernus pagu (5), pp.07-41. 

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